sábado, 25 de outubro de 2014

FALANGE

FALANGE

No banco da praça, uma senhora fazia tricô.  Havia ali um sol de outono e o verde das árvores que já ensaiavam um tom de sépia.O silêncio,  típico àquelas horas ,reinava, enquanto as crianças estavam na escola e seus pais iniciavam o trabalho, sem  trégua para apreciar o dia. Passavam dois homens de meia idade. Conversavam e riam alto, como velhos amigos:
  - Mas que grande canalha você, hein, Ernesto? Sempre defendendo hoje, as ideias que atacava ontem...
- Mário, Mário...você e sua lógica de vida, perfeita e inalterável...mais quadrada que os azulejos do meu banheiro
- Ih...ele já vai começar a ladainha esquerdista.... cale essa boca, seu excomungado
- Cale a boca você também! Nós somos dois velhos bêbados, só sabemos falar merda...
- É...precisamos dar uma maneirada nesses porres, não somos mais moleques, o corpo sente, custa a curar da ressaca
- Ultimamente, não consigo dormir direito...só bebendo muito que eu apago
- Se quiser eu te trago o calmante da minha patroa.  Um Sossega leão daqueles,  você vai dormir feito criança e sonhar com os anjinhos
- Você sabe muito bem que eu não sonho com os anjos, nem acredito neles. E meus sonhos, fique sabendo, quase sempre são pornográficos.
- Seu velho sujo e pervertido!  Quer que eu te leve em casa?
- Não precisa.
- Se cuide. E apareça em casa à tardinha, que vai ter bolo: hoje é aniversário da Fátima.
- Pode deixar.

Despediu-se do amigo e sentou-se no banco. A senhora, que tinha ouvido toda a conversa e, até então permanecera  concentrada no seu tricô, levantou a cabeça grisalha e rindo-se olhou para ele e perguntou:
- Então, o senhor não acredita em anjos?...
- Não , não acredito; Mas eles existem.
- Como assim? - perguntou ela, curiosa enquanto repousava o tricô e as agulhas sobre o colo
- Quando eu era moço, tive uma desilusão terrível por conta de mulher. Era minha noiva, que rompeu o compromisso, sem dar motivo. Hoje eu sei:  ela não casou comigo, porque eu não tinha onde cair morto. O caso é que eu me acabei, fui pro fundo do poço. Larguei emprego, larguei meus estudos, não quis saber de mais nada. Só bebia. Cheguei a dormir na rua, adoeci. Meus pais, coitados, no interior sem saber de nada. Eu tinha vindo pra São Paulo trabalhar e estudar. Um caso típico. Meus amigos me largaram. Eu não tinha ninguém. Fiquei só pele e osso; o corpo cheio de feridas. Eu fazia pena. Mas as pessoas tinham mesmo era nojo de mim. Um dia - eu me lembro como se fosse hoje: veio um moleque com um prato de comida e me entregou dizendo "foi aquela moça que mandou". Do outro lado da rua, tinha uma vendinha, a moça era filha do dono. E começou a mandar todo dia um prato de comida pelo moleque. Uma vez, ela veio em pessoa. Fui tomado pela vergonha, mas conversei com ela, que me levou para a casa de seus pais. Lá, eu tomei um banho, fiz a barba, troquei de roupa e dormi - depois de um ano dormindo no chão - o melhor sono da minha vida. Fiquei vivendo ali um bom tempo, até que arranjei trabalho e retomei minha vida casado com Ana - esse era o nome do meu "anjo". Vivemos juntos por dez anos, até que ela partiu, provavelmente, por ser boa demais para esse mundo...Ah...não fosse ela...talvez eu nem estivesse mais aqui. Aquele que a senhora viu conversando comigo é o irmão dela, meu cunhado. Outro que me salva a vida todos os dias. Um coração enorme. Percebe? E é por essas e outras, que eu não acredito em anjo, em santo nem nada ..acredito mesmo é nessas pessoas de carne e osso como a gente e que, por alguma razão, são um pouquinho melhores que nós...

- Então, o senhor não tem fé?. - perguntou ela, um pouco injuriada.
- Claro que tenho. Apesar dos pesares, ainda creio na humanidade. Os homens andam carentes de fé ...de fé em si mesmos...até um dia, dona.
- Até...

Ela não retomou o tricô, nem conseguia sair dali. Deixou-se ficar inerte, meio confusa e meio convertida...

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