sábado, 25 de outubro de 2014

AS FARPAS


            A caminho do trabalho, vinha um homem. E, avistando um certo sobrado, deu meia volta, preferiu tomar outro atalho. Pois lhe feriam as lembranças de certa pessoa que morou lá. A última gaveta do armário nunca se abria. Tinha medo de encontrar um ou outro suvenir que fizesse ressurgir antigos temores. Ouvindo o rádio, trocava de estação imediatamente, caso tocasse alguma música marcante em determinada época de sua vida. Detestava certas datas comemorativas por ter sido extremamente feliz ou infeliz exatamente num dia daqueles, em anos remotos.
Mudou outra vez o trajeto receoso de novo encontro indesejável. E,  poupando-se, tentava seguir a diante. Não mais aquele caminho. Não mais aquele assunto. Não mais aquele restaurante. Não mais aquela música. Não mais aquele filme, aquele prato, aquele vinho. Não mais aquela praia, aquela rodovia, aquela praça. E os nãos acumulavam-se ao passo que tudo remete a qualquer coisa que alude a algum ponto sensível e delicado. Ou, a uma neurose viciosa que ele já alimentava paternalmente.
Evitando forma obstinada todas as lembranças dolorosas, decidiu não sair mais de casa. E mesmo assim, as lembranças o importunavam, entre as paredes do próprio lar. Mudando de residência e de hábitos, dentro dele, elas ainda ressurgiam para atormentá-lo. Com ou sem propósito. Enfim, ele saiu de si. E desde então, nunca mais foi visto.

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